Parte João Cabral de Melo Neto e o que parece restar é a angústia do silêncio. Nesta hora calada vem a certeza de que nunca mais haverá versos inéditos, nenhuma metáfora inaudita, qualquer nova imagem. A dor aparece e invade mesmo aqueles que já sabiam com todas as letras de seu abandono definitivo da poesia nos últimos anos de vida por causa da cegueira. O poeta visual, da claridade, do equilíbrio, da construção, agora não tem mais voz. Não haverá outros cabralinos poemas. A palavra está muda. O vazio torna-se material, concreto e assume ainda maior volume quando pensa-se na confissão feita há poucos anos por este pernambucano reconhecido como um dos maiores autores em língua portuguesa: “Não creio ter forjado herdeiros”. Sem nomear seguidores, o poeta de certo modo aponta para que se acredite que a língua e a literatura do país ficam órfãs não só de quem parte, mas de quem viria em seu lugar.
Neste instante, sem guias poéticos a mostrar caminhos, um tanto perdidos, os leitores de seus versos parecem receber como único e triste legado o sentimento de um luto profundo. A escuridão dos anos finais de Cabral transfere-se para o imaginário lírico de seu público. Ficamos cegos de uma poesia de lúcida contundência e no calor da primeira hora da partida torna-se impossível não lembrar o tema da morte, de modo tão profundo presente nos versos do autor de Morte e Vida Severina. Talvez tocando o mistério final tocado em vida pelo poeta morto o enigma de sua partida possa começar a ser enfrentado. Afinal, o que pensava Cabral sobre esta porta sem volta que ele cruzou antes de nós? Que lição nos ensina?
Uma delas pode ser a de falar do doloroso tema privilegiando menos os sentimentos, os adjetivos e mais os substantivos que orbitam ao seu redor. Urubus, cemitérios, defuntos, covas rasas, covas grandes, coveiros, caixões são palavras presentes no espectro de seu vocabulário poético, dando materialidade e objetividade na construção de uma lírica sem derramamentos. É dessa forma que à Indesejada das gentes o pernambucano refere-se em diversos momentos de sua obra, numa sutil obsessão que chega a reconhecer em entrevistas como sendo uma maneira de exorcizar o próprio medo em relação ao desconhecido.
Nos versos de Cemitérios Metropolitanos, por exemplo, pode-se ver a angústia traduzida em perguntas: “Morrer não é valentemente/cruzar um fio pela frente? (...) Já cansado de falar, penso:/porque medo desse silêncio?/Porque tanto eu me temeria/que o nãoser não diga bom-dia,/se me deixa, morto ou desperto,/sem gente falando por perto?.” É o peso do silêncio que apavora o eu lírico, que logo a seguir explica-se: “É porque a morte nos sepulta,/ sem perguntar, à força bruta.”
Ainda sobre a inexorabilidade do destino humano, Cabral é ainda mais taxativo nos dois últimos versos de Máscara Mortuária Viva: “da sala da vida à da morte/é ir entre salas sem saída.” Não parece haver concessões redentoras, espaços para transcendências apaziguadoras na poesia cabralina. O poeta também não escamoteia a finitude que carregamos a cada passo da jornada, e ela faz-se presente de modo exemplar na inesquecível voz do Severino retirante de Morte e Vida Severina. “Desde que estou retirando/ só a morte vejo ativa, /só a morte deparei/e às vezes até festiva;/só morte tem encontrado/ quem pensava encontrar vida,”.
Apesar de visualizarmos um certo tom pessimista na abordagem do tema feita por João Cabral, há outros indícios a mostrar exatamente o contrário. Ao encarar de frente a crueza da trajetória humana, o poeta está pondo em cheque o sentido da vida. Está propondo uma questão que pode também ser lida pela voz de Severino:“Seu José, mestre carpina,/que diferença faria/se em vez de continuar/tomasse a melhor saída:/a de saltar, numa noite,/ fora da ponte da vida?” Sem modos de justificar uma existência sem sentido, permeada de morte, por que seguir adiante? A resposta para a pergunta será a janela a iluminar as salas sem saída em que nos deslocamos.
É mestre Carpina, no encerramento do Auto de Natal Pernambucano, logo depois de ter tornado-se pai de um menino franzino, Severino, quem responde: “Severino retirante,/ deixe agora que lhe diga: /eu não sei bem a resposta/da pergunta que fazia,/se não vale mais saltar/fora da ponte da vida;/nem conheço essa resposta,/ se quer mesmo que lhe diga;/é difícil defender,/só com palavras, a vida,/ainda mais quando ela é/esta que vê, severina;/mas se responder não pude/à pergunta que fazia,/ ela, a vida, a respondeu/ com sua presença viva./E não há melhor resposta/que o espetáculo da vida:/vê-la desfiar seu fio,/que também se chama vida,/ver a fábrica que ela mesma,/ teimosamente, se fabrica,/ vê-la brotar como há pouco/ em nova vida explodida;/ mesmo quando é assim pequena/ a explosão, como a ocorrida;/mesmo quando é uma explosão/como a de há pouco, franzina;/mesmo quando é a explosão/ de uma vida severina.”
Além do espetáculo da vida explicar o que parecia ser inexplicável, há outra lição de Cabral que merece ser lembrada. É a contida em O Cão Sem Plumas. No poema pode-se ver a contundência, o peso que carrega aquilo que tem vida: “O que vive/não entorpece./O que vive fere./O homem,/porque vive,/ choca com o que vive./ Viver é ir entre o que vive.//O que vive/incomoda de vida/o silêncio, o sono, o corpo/que sonhou cortar-se/roupas de nuvens./O que vive choca,/ tem dentes, arestas, é espesso.” Parece haver nestes versos a tentativa de tornar a existência palpável, material, corpórea. Mostrá-la em sua forma concreta e contundente e, de certo modo, incorporada da morte inevitável. Com esta densidade segue o ensinamento final do poeta: “Espesso,/porque é mais espessa/a vida que se luta/ cada dia, o dia que se adquire/ cada dia/(como uma ave/que vai cada segundo/conquistando seu vôo).”
Parte o poeta e já não resta mais apenas a angústia deixada por sua mudez. Suas palavras ensinam que a poesia, que é vida, deve ser conquistada a cada segundo para que não seja letra morta no papel. Assim, é preciso ler Cabral pelo compromisso de espantar o silêncio aterrador ao qual temia. É vital ler Cabral, pois somos todos seus legítimos herdeiros e o legado de sua voz generosa nos ensina que “viver é ir entre o que vive”.
*Susana Vernieri é jornalista, doutoranda em Literatura Brasileira pela Ufrgs. Autora do livro O Capibaribe de João Cabral em O Cão Sem Plumas e o Rio: duas águas?(1999)
Neste instante, sem guias poéticos a mostrar caminhos, um tanto perdidos, os leitores de seus versos parecem receber como único e triste legado o sentimento de um luto profundo. A escuridão dos anos finais de Cabral transfere-se para o imaginário lírico de seu público. Ficamos cegos de uma poesia de lúcida contundência e no calor da primeira hora da partida torna-se impossível não lembrar o tema da morte, de modo tão profundo presente nos versos do autor de Morte e Vida Severina. Talvez tocando o mistério final tocado em vida pelo poeta morto o enigma de sua partida possa começar a ser enfrentado. Afinal, o que pensava Cabral sobre esta porta sem volta que ele cruzou antes de nós? Que lição nos ensina?
Uma delas pode ser a de falar do doloroso tema privilegiando menos os sentimentos, os adjetivos e mais os substantivos que orbitam ao seu redor. Urubus, cemitérios, defuntos, covas rasas, covas grandes, coveiros, caixões são palavras presentes no espectro de seu vocabulário poético, dando materialidade e objetividade na construção de uma lírica sem derramamentos. É dessa forma que à Indesejada das gentes o pernambucano refere-se em diversos momentos de sua obra, numa sutil obsessão que chega a reconhecer em entrevistas como sendo uma maneira de exorcizar o próprio medo em relação ao desconhecido.
Nos versos de Cemitérios Metropolitanos, por exemplo, pode-se ver a angústia traduzida em perguntas: “Morrer não é valentemente/cruzar um fio pela frente? (...) Já cansado de falar, penso:/porque medo desse silêncio?/Porque tanto eu me temeria/que o nãoser não diga bom-dia,/se me deixa, morto ou desperto,/sem gente falando por perto?.” É o peso do silêncio que apavora o eu lírico, que logo a seguir explica-se: “É porque a morte nos sepulta,/ sem perguntar, à força bruta.”
Ainda sobre a inexorabilidade do destino humano, Cabral é ainda mais taxativo nos dois últimos versos de Máscara Mortuária Viva: “da sala da vida à da morte/é ir entre salas sem saída.” Não parece haver concessões redentoras, espaços para transcendências apaziguadoras na poesia cabralina. O poeta também não escamoteia a finitude que carregamos a cada passo da jornada, e ela faz-se presente de modo exemplar na inesquecível voz do Severino retirante de Morte e Vida Severina. “Desde que estou retirando/ só a morte vejo ativa, /só a morte deparei/e às vezes até festiva;/só morte tem encontrado/ quem pensava encontrar vida,”.
Apesar de visualizarmos um certo tom pessimista na abordagem do tema feita por João Cabral, há outros indícios a mostrar exatamente o contrário. Ao encarar de frente a crueza da trajetória humana, o poeta está pondo em cheque o sentido da vida. Está propondo uma questão que pode também ser lida pela voz de Severino:“Seu José, mestre carpina,/que diferença faria/se em vez de continuar/tomasse a melhor saída:/a de saltar, numa noite,/ fora da ponte da vida?” Sem modos de justificar uma existência sem sentido, permeada de morte, por que seguir adiante? A resposta para a pergunta será a janela a iluminar as salas sem saída em que nos deslocamos.
É mestre Carpina, no encerramento do Auto de Natal Pernambucano, logo depois de ter tornado-se pai de um menino franzino, Severino, quem responde: “Severino retirante,/ deixe agora que lhe diga: /eu não sei bem a resposta/da pergunta que fazia,/se não vale mais saltar/fora da ponte da vida;/nem conheço essa resposta,/ se quer mesmo que lhe diga;/é difícil defender,/só com palavras, a vida,/ainda mais quando ela é/esta que vê, severina;/mas se responder não pude/à pergunta que fazia,/ ela, a vida, a respondeu/ com sua presença viva./E não há melhor resposta/que o espetáculo da vida:/vê-la desfiar seu fio,/que também se chama vida,/ver a fábrica que ela mesma,/ teimosamente, se fabrica,/ vê-la brotar como há pouco/ em nova vida explodida;/ mesmo quando é assim pequena/ a explosão, como a ocorrida;/mesmo quando é uma explosão/como a de há pouco, franzina;/mesmo quando é a explosão/ de uma vida severina.”
Além do espetáculo da vida explicar o que parecia ser inexplicável, há outra lição de Cabral que merece ser lembrada. É a contida em O Cão Sem Plumas. No poema pode-se ver a contundência, o peso que carrega aquilo que tem vida: “O que vive/não entorpece./O que vive fere./O homem,/porque vive,/ choca com o que vive./ Viver é ir entre o que vive.//O que vive/incomoda de vida/o silêncio, o sono, o corpo/que sonhou cortar-se/roupas de nuvens./O que vive choca,/ tem dentes, arestas, é espesso.” Parece haver nestes versos a tentativa de tornar a existência palpável, material, corpórea. Mostrá-la em sua forma concreta e contundente e, de certo modo, incorporada da morte inevitável. Com esta densidade segue o ensinamento final do poeta: “Espesso,/porque é mais espessa/a vida que se luta/ cada dia, o dia que se adquire/ cada dia/(como uma ave/que vai cada segundo/conquistando seu vôo).”
Parte o poeta e já não resta mais apenas a angústia deixada por sua mudez. Suas palavras ensinam que a poesia, que é vida, deve ser conquistada a cada segundo para que não seja letra morta no papel. Assim, é preciso ler Cabral pelo compromisso de espantar o silêncio aterrador ao qual temia. É vital ler Cabral, pois somos todos seus legítimos herdeiros e o legado de sua voz generosa nos ensina que “viver é ir entre o que vive”.
*Susana Vernieri é jornalista, doutoranda em Literatura Brasileira pela Ufrgs. Autora do livro O Capibaribe de João Cabral em O Cão Sem Plumas e o Rio: duas águas?(1999)
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